Os tristes dias do nosso infortúnio
29 Outubro2010
Baptista Bastos - b.bastos@netcabo.pt
Na terça-feira, 26 de Outubro, p.p., assistimos, estupefactos, a um
espectáculo deprimente.
O dr. Cavaco consumiu vinte minutos, no Centro Cultural de Belém, a
esclarecer os portugueses que não havia português como ele. Os
portugueses, diminuídos com a presunção e esmagados pela soberba,
escutaram a criatura de olhos arregalados. Elogio em boca própria é
vitupério, mas o dr. Cavaco ignora essa verdade axiomática, como,
aliás, ignora um número quase infindável de coisas.
O discurso, além de tolo, era um arrazoado de banalidades, redigido
num idioma de eguariço. São conhecidas as amargas dificuldades que
aquele senhor demonstra em expressar-se com exactidão. Mas, desta
vez, o assunto atingiu as raias da nossa indignação. Segundo ele de si
próprio diz, tem sido um estadista exemplar, repleto de êxitos políticos e
de realizações ímpares. E acrescentou que, moralmente, é inatacável.
O passado dele não o recomenda. Infelizmente. Foi um dos piores
primeiros-ministros, depois do 25 de Abril. Recebeu, de Bruxelas,
oceanos de dinheiro e esbanjou-os nas futilidades de regime que,
habitualmente, são para "encher o olho" e cuja utilidade é duvidosa.
Preferiu o betão ao desenvolvimento harmonioso do nosso estrato
educacional; desprezou a memória colectiva como projecto ideológico,
nisso associando-se ao ideário da senhora Tatcher e do senhor Regan;
incentivou, desbragadamente, o culto da juventude pela juventude,
característica das doutrinas fascistas; crispou a sociedade portuguesa
com uma cultura de espeque e atrabiliária e, não o esqueçamos nunca,
recusou a pensão de sangue à viúva de Salgueiro Maia, um dos mais
abnegados heróis de Abril, atribuindo outras a agentes da PIDE, "por
serviços relevantes à pátria." A lista de anomalias é medonha.
Como Presidente é um homem indeciso, cheio de fragilidades e de
ressentimentos, com a ausência de grandeza exigida pela função. O
caso, sinistro, das "escutas a Belém" é um dos episódios mais vis da
história da II República. Sobre o caso escrevi, no Negócios, o que tinha
de escrever. Mas não esqueço o manobrismo nem a desvergonha,
minimizados por uma Imprensa minada por simpatizantes de
jornalismos e por estipendiados inquietantes. Em qualquer país do
mundo, seriamente democrático, o dr. Cavaco teria sido corrido a sete
pés.
O lastro de opróbrio, de fiasco e de humilhação que tem deixado atrás
de si, chega para acreditar que as forças que o sustentam, a
manipulação a que os cidadãos têm sido sujeitos, é da ordem da
mancha histórica. E os panegíricos que lhe tecem são ultrajantes para
aqueles que o antecederam em Belém e ferem a nossa elementar
decência.
É este homem de poucas qualidades que, no Centro Cultural de Belém,
teve o descoco de se apresentar como símbolo de virtudes e sinónimo de
impolutabilidade. É este homem, que as circunstâncias determinadas
pelas torções da História alisaram um caminho sem pedras e
empurraram para um destino que não merece - é este homem sem jeito
de estar com as mãos, de sorriso hediondo e de embaraços múltiplos,
que quer, pela segunda vez, ser Presidente da nossa República. Triste
República, nas mãos de gente que a não ama, que a não desenvolve,
que a não resguarda e a não protege!
Estamos a assistir ao fim de muitas esperanças, de muitos sonhos
acalentados, e à traição imposta a gerações de homens e de mulheres. É
gente deste jaez e estilo que corrói os alicerces intelectuais, políticos e
morais de uma democracia que, cada vez mais, existe, apenas, na
superfície. O estado a que chegámos é, substancialmente, da
responsabilidade deste cavalheiro e de outros como ele.
Como é possível que, estando o País de pantanas, o homem que se
apresenta como candidato ao mais alto emprego do Estado, não tenha,
nem agora nem antes, actuado com o poder de que dispõe? Como é
possível? Há outros problemas que se põem: foi o dr. Cavaco que
escreveu o discurso? Se foi, a sua conhecida mediocridade pode ser
atenuante. Se não foi, há alguém, em Belém, que o quer tramar.
Um amigo meu, fundador de PSD, antigo companheiro de Sá Carneiro e
leitor omnívoro de literatura de todos os géneros e projecções, que me
dizia: "Como é que você quer que isto se endireite se o dr. Cavaco e a
maioria dos políticos no activo diz 'competividade' em vez de
'competitividade' e julga que o Padre António Vieira é um pároco de
qualquer igreja?"
Pessoalmente, não quero nada. Mas desejava, ardentemente desejava,
ter um Presidente da República que, pelo menos, soubesse quantos
cantos tem "Os Lusíadas."
b.bastos@netcabo.pt