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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

EGIPTO HOJE




A multidão contra o ditador

Manifestantes são atacados pela polícia egípcia 
na ponte Qasr al-Nil, perto da Praça Tahrir, no Cairo, em 28 de janeiro.
por Robert Fisk/The Guardian
Tradução: Coletivo Vila Vudu/São Paulo
Pode ser o fim. Com certeza é o começo do fim. Em todo o Egito, dezenas de milhares de árabes
 enfrentaram gás lacrimogêneo, canhões de água, granadas e tiroteio para exigir
 o fim da ditadura de Hosni Mubarak depois de mais de 30 anos.

Enquanto Cairo mergulha em nuvens de gás lacrimogêneo das 

milhares de granadas lançadas contra multidões compactas,
 era como se a ditadura de Mubarak realmente andasse rumo ao fim
. Ninguém, dos que estávamos ontem nas ruas do Cairo
, tínhamos nem ideia de por onde andaria Mubarak –
 que mais tarde apareceria na televisão, para demitir
 todos seus ministros. Nem encontrei alguém preocupado com Mubarak.

Eram dezenas de milhares, valentes, a maioria pacíficos,

 mas a violência chocante dos battagi – em árabe, 
a palavra significa literalmente “bandidos” – uniformizados
 sem uniforme das milícias de Mubarak, que espancaram,
 agrediram e feriram manifestantes, enquanto os guardas
 apenas assistiam e nada fizeram, foi uma desgraça.
 Esses homens, quase todos dependentes de drogas
 e ex-policiais, eram ontem a linha de frente do Estado egípcio.
 Os verdadeiros representantes de Hosni Mubarak. 

Num certo momento, havia uma cortina de gás lacrimogêneo

 por cima das águas do Nilo, enquanto as milícias antitumultos 
e os manifestantes combatiam sobre as grandes pontes sobre 
o rio. Incrível. A multidão levantou-se e não mais aceitará a
 violência, a brutalidade, as prisões, como se essa fosse a
 parte que lhe coubesse na maior nação árabe do planeta.
 Os próprios policiais pareciam saber que estavam sendo derrotados. 
“E o que podemos fazer?” – perguntou-nos um dos guardas
 das milícias antitumulto. “Cumprimos ordens. Pensam
 que queremos isso? Esse país está despencando ladeira abaixo
.” O governo impôs um toque de recolher noite passada.
 A multidão ajoelhou-se para rezar, à frente da polícia.

Como se descreve um dia que pode vir a ser página gigante

 da história do Egito? Os jornalistas devem abandonar as análises
 e apenas narrar o que aconteceu da manhã à noite, numa das cidades
 mais antigas do mundo. Então, aí está a história como a anotei, 
garatujada no meio da multidão que não se rendeu a milhares d
e policiais uniformizados da cabeça aos pés e e milicianos sem uniforme. 

Começou na mesquita Istikama na Praça Giza: um sombrio conjunto

 de apartamentos de blocos de concreto, e uma fileira de policias
 especializados em controle de tumultos que se estendia até o Nilo.
 Todos sabíamos que Mohamed ElBaradei ali estaria para as orações
 do meio dia e, de início, parecia que não haveria muita gente. 
Os policiais fumavam. Se fosse o fim do reinado de Mubarak,
 aquele começo do fim pouco impressionava.

Mas então, logo que as últimas orações terminaram,

 uma multidão de fiéis apareceu na rua, andando em
 direção aos policiais. “Mubarak, Mubarak”, gritavam,
 “a Arábia Saudita o espera”. Foi quando os canhões de água 
foram virados na direção da multidão – a polícia estava 
organizada para atacar os manifestantes, mesmo
 não sendo atacada. A água atingiu a multidão e em seguida
 os canhões foram apontados diretamente contra ElBaradei,
 que retrocedeu, encharcado.

ElBaradei desembarcara de Viena poucas horas antes,

 e poucos egípcios creem que chegue a governar o Egito
 – diz que só veio para ajudar como negociador –,
 mas foi atacado com brutalidade, uma desgraça
. O político egípcio mais conhecido e respeitado, Prêmio Nobel,
 trabalhou como principal inspetor da Agência Nuclear da ONU,
 ali, encharcado como gato de rua. Creio que,
 para Mubarak, ElBaradei
 não passaria de mais um criador de confusão, 
com sua “agenda oculta” –
 essa, precisamente, é a linguagem que o governo egípcio fala hoje.

Aí, começaram as granadas de gás lacrimogêneo.

 Alguns milhares delas, mas algo aconteceu,
 enquanto eu caminhava ao lado dos lança-granadas.
 Dos blocos de apartamentos e das ruas à volta, 
de todas as ruas e ruelas, centenas, depois
 de milhares de pessoas começaram a aparecer,
 todas andando em direção à Praça Tahrir. Era o movimento
 que a polícia queria impedir. Milhares de cidadãos em 
manifestação no coração da cidade do Cairo daria a impressão
 de que o governo já caíra. Já haviam cortado a internet –
 o que isolou o Egito, do resto do mundo – 
e todos os sinais de telefonia celular estavam mudos. Não fez diferença.

“Queremos o fim do regime”, gritavam as ruas.

 Talvez não tenha sido o mais memorável
 brado revolucionário, mas gritaram e gritaram e repetiram, 
até derrotar a chuva de granadas de gás lacrimogêneo.
 Vinham de todos os lados da cidade do Cairo,
 chegavam sem parar, jovens de classe média de Gazira,
 os pobres das favelas de Beaulak al-Daqrour, todos marchando
 pelas pontes sobre o Nilo, como um exército. Acho que sim, são um exército.

A chuva de granadas de gás continuava sobre eles.

 Tossiam e esfregavam os olhos e continuavam andando. 
Muitos cobriram a cabeça e a boca com casacos e camisetas
, passando em fila pela frente de uma loja de sucos, 
onde o dono esguichava limonada diretamente na boca dos passantes.
 Suco de limão – antídoto contra os efeitos do 
gás lacrimogêneo – escorria pela calçada e descia pelo esgoto.

Foi no Cairo, claro, mas protestos idênticos aconteceram por todo o Egito,

 como em Suez, onde já há 13 egípcios mortos. 

As manifestações não começaram só nas mesquitas, 

mas também nas igrejas coptas. “Sou cristão, mas antes sou egípcio” 
– disse-me um homem, Mina. “Quero que Mubarak se vá!”
 E foi quando apareceram os primeiros bataggi sem uniforme,
 abrindo caminho até a frente das fileiras da polícia uniformizada,
 para atacar os manifestantes. Estavam armados com cassetetes de metal
 – onde conseguiram? – e barras de ferro, e poderão ser julgados e condenados por agressão grave e assassinato, se o regime de Mubarak cair. São pervertidos. Vi um homem chicotear um jovem pelas costas,
 com um longo cabo amarelo. O rapaz gritou de dor. Por toda a cidade
, os policiais uniformizados andam em pelotões, o sol refletindo no
 visor dos capacetes. A multidão já deveria ter sido intimidada
, àquela altura, mas a polícia parecia feia, como pássaros encapuzado
s. E os manifestantes alcançaram a calçada da margem leste do Nilo.

Alguns turistas foram colhidos de surpresa no meio do espetáculo –

 vi três senhoras de meia idade, numa das pontes do Nilo (os hotéis,
 claro, não informaram os hóspedes sobre o que estava acontecendo –,
 mas a polícia decidiu que fecharia a extremidade leste do viaduto.
 Dividiram-se outra vez, para deixar passar as milícias não uniformizadas,
 e esses brutamontes atacaram a primeira fileira dos manifestantes.
 E foi quando choveu a maior quantidade de granadas de gás, centenas de granadas,
 em vários pontos, contra a multidão que andava sem parar por todas as grandes vias
, em direção cidade. Os olhos ardem, e tosse-se horrivelmente, até perder o fôlego
. Alguns homens vomitavam nas soleiras das portas fechadas das lojas.

O fogo começou, ao que se sabe, noite passada, na sede do NDP,

 Partido Democrático Nacional, partido de Mubarak. O governo impôs
 um toque de recolher, e há relatos de tropas na cidade, sinal grave
 de que a polícia pode ter perdido o controle dos acontecimentos.
 Nos abrigamos no velho Café Riche, perto da Praça Telaat Harb,
 restaurante e bar minúsculo, com garçons vestidos de azul; e ali,
  tomando café, estava o grande escritor egípcio Ibrahim Abdul Meguid,
 bem ali à nossa frente. Foi como dar de cara com Tolstoi, almoçando 
em plena revolução russa. “Mubarak está sem reação!” – festejou ele. 
“É como se nada estivesse acontecendo. Mas vai, agora vai. 
O povo fará acontecer!” Sentamos, ainda tossindo e chorando
 por causa do gás. Foi desses instantes memoráveis, que acontecem
 mais em filmes que na vida real.

E havia um velho na calçada, cobrindo os olhos com a mão.

 Coronel da reserva Weaam Salim do exército do Egito,
 que saiu para a rua com todas as suas medalhas
 da guerra de 1967 contra Israel – que o Egito perdeu –
 e da guerra de 1973 que, para o coronel, o Egito venceu.
 “Estou deixando o piquete dos soldados veteranos” – disse-me ele
. “Vou-me juntar aos manifestantes”. E o exército? Não se viram soldados
 do exército durante todo o dia. Os coronéis e brigadeiros 
mantêm-se em silêncio. Estarão à espera da lei marcial de Mubarak?

As multidões não obedeceram ao toque de recolher. Em Suez,

 caminhões da polícia foram incendiados. Bem à frente
 do meu hotel, tentaram jogar no rio Nilo um caminhão da Polícia.
 Não consegui voltar à parte ocidental do Cairo pelas pontes. 
As granadas de gás ainda empesteiam as margens do Nilo.
 Mas um policial ficou com pena de nós – 
emoção absolutamente inexistente, devo dizer, ontem,
 entre os policiais – e nos guiou até a margem do rio.
 E ali estava uma velha lancha egípcia a motor, de levar turistas,
 com flores plásticas e proprietário disponível. Voltamos em grande estilo,
 bebendo Pepsi. Cruzamos com uma lancha amarela, super rápida, da qua
l dois homens faziam sinais de vitória para a multidão sobre as pontes. 
Uma jovem, sentada na parte de trás da lancha, carregava uma imensa bandeira: a bandeira do Egito.

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Robert Fisk
Egito: uma ditadura nas vascas da morte 
30/1/2011, The Independent, UK
http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/fisk/robert

-fisk-egypt-death-throes-of-a-dictatorship-2198444.html 
Os tanques egípcios, os manifestantes em delírio sentados sobre eles,
 as bandeiras, os 40 mil manifestantes lacrimejando
 e gritando vivas na Praça da Liberdade e rezando
 à volta dos tanques, um membro da Fraternidade Muçulmana 
sentado entre os ocupantes do tanque. Pode-se talvez comparar
 à libertação de Bucareste? Subi eu também sobre um tanque de combate
, e só conseguia pensar naqueles maravilhosos filmes da libertação de Paris
. A apenas algumas centenas de metros dali, os guardas
 da segurança de Mubarak, nos uniformes pretos, ainda
 atiravam contra manifestantes perto do ministério do Interior
. Foi celebração selvagem de vitória histórica, os tanques
 de Mubarak libertando a capital de sua própria ditadura.

No mundo de pantomima de Mubarak – e de Barack Obama

 e Hillary Clinton em Washington –, o homem que ainda 
se diz presidente do Egito deu posse a um vice-presidente
 cuja escolha não poderia ter sido pior, na tentativa de aplacar
 a fúria dos manifestantes – Omar Suleiman, chefe-negociado
r do Egito com Israel e principal agente da
inteligência egípcia, 75 anos de idade e muitos de contatos
 com Telavive e Jerusalém, além de quatro ataques cardíacos
. Não se sabe de que modo esse velho apparatchik doente
 conseguiria enfrentar a fúria e a alegria de 80 milhões de egípcios
 que se vão livrando de Mubarak. Quando falei a alguns manifestantes
 ao meu lado sobre o tanque, da nomeação e posse de Suleiman
, houve gargalhadas.

Os soldados que conduzem os tanques,

 em uniforme de combate, sorridentes e às vezes
 aplaudindo os passantes, não fizeram qualquer
 esforço para apagar das laterais dos tanques os graffiti
 ali pintados com tinta spray. “Fora Mubarak! Caia fora, Mubarak!”
 e “Mubarak, seu governo acabou” aparecem grafitados 
em praticamente todos os tanques que se veem 
pelas ruas do Cairo. Sobre um dos tanques que circulavam
 pela Praça da Liberdade, vi um alto dirigente da Fraternidade Muçulmana
, Mohamed Beltagi. Antes, andei ao lado de um comboio
 de tanques próximo de Garden City, subúrbio do Cairo
, onde as multidões subiram aos tanques para oferecer 
laranjas aos soldados, aplaudindo-os como patriotas egípcios
. A nomeação ensandecida e sem sentido de um vice-presidente
 [o primeiro, em 30 anos, e nomeação que significa que Mubarak
 desistiu de nomear o filho para substituí-lo no poder (NTs)] e a formação
 de um ‘novo’ Gabinete sem poder algum, constituído só de velhos conhecidos
 dos egípcios, evidenciam que as ruas do Cairo viram e veem 
o que nem os estrategistas e políticos dos EUA
 e da União Europeia souberam ver: que o tempo de Mubarak acabou
.

As frágeis ameaças de Mubarak de que empregará

 repressão violenta em nome do bem estar dos egípcios 
 –  quando já se sabe que a sua própria polícia e suas milícias
 são responsáveis pelos ataques mais violentos dos últimos cinco dias
 – só geraram ainda mais fúria entre os manifestantes,
 vítimas de 30 anos de ditadura várias vezes muito violenta.
 Crescem as suspeitas de que os piores ataques da repressão
 foram executados por milícias não uniformizadas – inclusive
 o assassinato de 11 homens numa vila do interior do país nas últimas 24 horas –
, tentativa de dividir o movimento e criar suspeitas contra as intenções 
democratizantes das manifestações contra o governo de Mubarak. 
A destruição dos centros de comunicações 
por grupos de homens mascarados – que se suspeita que tenha sido ordenada
 por alguma agência da segurança de Mubarak – também parece ter sido obra
 das milícias não uniformizadas que espancaram manifestantes.

Mas o incêndio de postos policiais no Cairo, Alexandria, 

Suez e outras cidades não foram obra daquelas milícias.
 No final da 6ª-feira, a 40 milhas do Cairo, na estrada para Alexandria
, havia grandes grupos de jovens em torno de fogueiras acesas no meio 
da estrada e, quando os carros paravam, eram assaltados; os assaltantes
 exigiam dólares, sempre muitos, em dinheiro. Ontem pela manhã, homens
 armados roubavam carros, de dentro dos quais arrancavam motoristas
 e passageiros, no centro do Cairo.

Infinitamente mais terrível foi o vandalismo

 contra o Museu Nacional do Egito. 
Depois que a polícia abandonou o serviço de segurança do museu,
 houve invasão de saqueadores e vândalos, que roubaram
 ou destruíram peças de 4 mil anos, múmias e peças
 de madeira esculpida de valor inestimável – 
barcos, esculpidos com todos os detalhes e a tripulação,
 miniaturas magníficas, feitas para acompanhar os faraós na viagem pós-morte
. Vitrines que protegiam trajes milenares foram quebradas, os guardas pintados
 de preto arrancados e depredados. Outra vez, é preciso registrar que há boatos
 de que os próprios policiais destruíram o museu, antes de fugir na 6ª-feira à noite
. Lembrança fantasmagórica do museu de Bagdá em 2003. Bagdá 
foi pior, a destruição foi mais total, mas mesmo assim foi terrível
 o desastre do museu do Cairo.

Em minha jornada noturna da Cidade 6 de Outubro até a capital,

 tive de diminuir a velocidade várias vezes, porque a estrada
 está cheia de restos de veículos queimados. Havia destroços
 e vidros quebrados pela estrada, e muitos policiais armados, 
com rifles apontados para os faróis do meu carro. 
Vi um jipe semidestruído. Os restos do equipamento da polícia
 antitumulto que os manifestantes expulsaram da cidade do Cairo na 6ª-feira.
 Os mesmos manifestantes que, ontem à noite, formavam
 círculo gigantesco em torno da Praça da Liberdade para rezar
. Gritos de “Allah Alakbar” trovejavam pela cidade no ar da noite.

Há também quem clame por vingança. Uma equipe de jornalistas da 

rede al-Jazeera encontrou 23 cadáveres em Alexandria, aparentemente 
assassinados pela polícia. Vários tinham os rostos
 horrivelmente mutilados. Outros onze cadáveres foram
 encontrados no Cairo, cercados por parentes que gritavam por vingança contra a polícia.

No momento, Cairo salta em minutos da alegria para

 a mais terrível fúria. Ontem pela manhã, andei
 pela ponte do rio Nilo e vi as ruínas do prédio de
 15 andares onde funcionava a sede do partido de Mubarak
, que foi incendiado. À frente, um imenso cartaz pregava os benefício
s que o partido trouxe ao Egito – imagens de estudantes
 formados bem sucedidos, médicos e pleno emprego, promessa
s que o governo de Mubarak sempre repetiu e jamais cumpriu em 30 anos
 – emoldurados pela fuligem, semiqueimados, pendentes
 das janelas enegrecidas do prédio. Milhares de egípcios
 andavam pela ponte e pelos acessos laterais para fotografar
 o prédio ainda fumegante – e muitos saqueadores, a maioria velhos,
 que tiravam de lá mesas e cadeiras.

No instante em que uma equipe de televisão escocesa 

preparava-se para filmar as mesmas cenas, foi cercada
 por várias pessoas que disseram que não tinham
 o direito de filmar os incêndios, que os egípcios
 são povo orgulhoso que não roubaria nem saquearia. 
O assunto foi discutido várias vezes ao longo do dia:
 se a imprensa teria ou não o direito de divulgar imagens sobre essa “libertação”, 
que veiculassem ideias menos dignas do movimento. Mesmo assim,
 os manifestantes mantinham-se cordiais e – apesar das declarações
 acovardadas de Obama, na 6ª-feira à noite – não se viu nenhum,
 nem qualquer mínimo sinal de hostilidade contra os EUA.
 “Tudo que queremos, tudo, exclusivamente, é que Mubarak
 vá-se daqui, que haja eleições que nos devolvam a liberdade
 e a honra” – disse-me uma psiquiatra de 30 anos. 
Por trás dela, multidões de jovens limpavam o leito da rua,
 removendo restos de veículos e barreiras postas nas 
intersecções e esquinas – releitura irônica do conhecido
 ditado egípcio, de que os egípcios nunca varrerão as próprias ruas.

A alegação de Mubarak, de que as atuais demonstrações e 

atos de delinqüência – a combinação foi tema do discurso
 em que Mubarak declarou que não deixaria o Egito –
 seriam parte de um “plano sinistro” é evidentemente o núcle
o de seu argumento, na tentativa de não perder o reconhecimento mundial. 

De fato, a própria resposta de Obama – sobre 

a necessidade de reformas e o fim da violência –
 foi cópia exata de todas as mentiras que Mubarak
 sempre usou para defender seu governo durante 30 anos
. Os egípcios riram de Obama – inclusive no Cairo,
 depois de eleito – quando exigiu que os árabes abraçassem
 a liberdade e a democracia. Mas até essas aspirações sumiram
 completamente quando, na 6ª-feira, Obama assegurou
 seu desconfortável e incomodado apoio ao presidente egípcio.
 O problema é o de sempre: as linhas do poder e as linhas
 da moralidade em Washington jamais convergem
 quando os presidentes dos EUA têm de lidar com o Oriente Médio.
 A liderança moral dos EUA cessa de existir quando
 há confronto declarado entre o mundo árabe e Israel.

E o exército egípcio, desnecessário lembrar, é parte da equação.

 Recebe de Washington mais de 1,3 bilhão de dólares de auxílio anual.
 O comandante desse exército, general Tantawi – que casualmente estava
 em Washington, quando a polícia tentava esmagar os manifestantes –
 sempre foi muito amigo, pessoal, íntimo, de Mubarak. Não é bom sinal,
 parece, pelo menos no futuro imediato.

Assim, a “libertação” do Cairo – onde houve notícias,

 ontem à noite, de saques no hospital Qasr al-Aini – 
ainda tem a andar, até a consumação. 
O fim pode ser claro. A tragédia ainda não acabou.


Non coché 

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